FICA CONOSCO, SENHOR

 


A principal e a mais marcante característica de nosso tempo é a desorientação. Para todas as direções onde pusermos o nosso olhar – para os nossos valores, para a nossa realidade psíquica, para a vida profissional, para o contexto socioeconômico, para a esfera política – nós só encontramos desalento e falta de rumo. E isso se dá exatamente porque nós, acostumados que fomos ao longo das últimas décadas a nos apartarmos de toda a vida transcendente e abertura para o divino, aprendemos a colocar as nossas esperanças em ideologias e práticas desumanizadoras, que nos ensinaram a negar ao ser humano a sua qualidade de dependente da Graça e co-criador, junto de Deus, de uma realidade apontada para o Alto. Porque caímos do lugar onde o Pai nos pôs – o cume de toda a criação, o lugar mais excelso e de maior responsabilidade e caridade – para rastejarmos em nossa própria cegueira anímica e espiritual, somos incapazes, sem apelar para o poder divino, de seguir o sentido que nos leva à autorrealização como filhos de Deus e para a nossa salvação.

E assim seguimos, como os discípulos de Emaús, centrados na experiência desorientadora da dor e do sofrimento da Cruz, mas sem percebermos a vitória e a libertação que a partir dela ocorreram. A tristeza de uma vida vivida sem sentido nem valores e em um mundo corroído pela cegueira em relação às coisas divinas faz com que nós, assim como aqueles discípulos, nos entreguemos à melancolia e à desesperança. Da mesma forma que eles, também nós observamos a realidade com olhos humanos e a interpretamos com nosso juízo insuficiente e limitado: enxergamos a dor do Cristo que se esvai em sangue e que morre, sem nos entregarmos com olhar de esperança e fé à ressurreição que certamente virá. Segundo o Papa Francisco: “Os dois peregrinos cultivavam uma esperança somente humana, que agora estava em pedaços. Aquela cruz erguida no Calvário era o sinal mais eloquente de um fracasso que não poderiam prever. Se verdadeiramente aquele Jesus era segundo o coração de Deus, deveriam concluir que Deus era inerme, indefeso nas mãos dos violentos, incapaz de opor resistência ao mal”.

Mas eis que lhes aparece Jesus e percorre com eles o caminho até Emaús. Ele vem ao encontro daqueles que n’Ele acreditaram para sustentá-los na fé e preencher seus corações de viva esperança. “Os discípulos, porém, estavam como que cegos, e não o reconheceram” (Lc 24,16). Nós, os discípulos de Jesus de todos os tempos, somos muitas vezes lerdos em perceber a Sua presença em nosso meio, ora porque estamos tão submergidos em nossos próprios interesses e intenções que não atentamos para a Sua proximidade, ora porque o nosso coração é quase sempre insensível para penetrar na delicada mas impactante cercania divina à nossa existência. Mas Cristo não apenas se aproxima de nós, mas se interessa por nossos assuntos e indaga a respeito de nossas questões: ““O que ides conversando pelo caminho?” (Lc 24, 17). Diante da mentalidade estreita dos discípulos, Jesus aproveita para recapitular junto deles toda a mensagem do Evangelho, como nos ensina o Papa João Paulo II: “(...) Cristo procura em primeiro lugar modificar o seu modo de pensar puramente humano. Para isso, invoca ‘a Palavra dos Profetas’ (cf. Lc 24, 25), a partir de Moisés. (...) As Escrituras Sagradas contêm a Palavra de Deus: procurai entender os acontecimentos dos últimos dias, à luz desta Palavra; não procureis aplicar-lhes a própria interpretação humana. A Palavra de Deus prenunciou o Messias como o Servo Sofredor, sobre Quem pesarão os pecados de todos os homens. Este sofrimento expiatório, levado à sua dimensão extrema, na Cruz do Gólgota, é o cumprimento pleno da Palavra de Deus, exarada no Antigo Testamento: era preciso que suportasse todos estes sofrimentos, para entrar na sua glória”.

Ao chegarem a Emaús e perceberem que Jesus (cuja identidade eles ainda ignoravam) seguiria o Seu caminho, pediram-lhe que permanecesse com eles: “Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!” (Lc 24, 29). A presença confortadora e acolhedora de Cristo, que se mantém junto de nós com Sua palavra de consolo e fortaleza, estimula a que Lhe peçamos para estar ao nosso lado, ainda que nós não O reconheçamos claramente em muitos momentos de nossa jornada. “Jesus entrou para ficar com eles”. Este mesmo Cristo deseja permanecer junto de nós – e em nós – nestes momentos em que a dor e o desamparo nos inquietam e, uma vez perto de nós, perto de nossa vida, de nossa história, de nosso coração, Ele se manifesta em todo o Seu amor e em Sua misericórdia. “Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía. Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus” (Lc 24, 30). Na fração do Pão, na Eucaristia, descortina-se para aqueles discípulos – e também para nós – a verdade do amor de Cristo, que se doou a nós como alimento para saciar a nossa fome de eternidade. O sacramento é ali, mais do que nunca, sinal da bondade incomensurável de Jesus por toda a humanidade e penhor de nossa mútua união no discipulado, que revela ao mundo todo o amor misericordioso de Deus.

Ensina-nos, ainda, o Papa Francisco: “O encontro de Jesus com os dois discípulos de Emaús é rápido. Todavia, nele está todo o destino da Igreja. Narra-nos que a comunidade cristã não está fechada numa cidadela fortificada, mas caminha no seu ambiente mais vital, ou seja, a estrada. (...) A Igreja escuta as histórias de todos, assim como sobressaem do íntimo da consciência pessoal; para depois oferecer a Palavra de vida, o testemunho de amor, amor fiel até ao fim. E então o coração das pessoas volta a arder de esperança”. A partir da experiência profunda da Eucaristia, nós, os discípulos de Jesus, reconhecemos não apenas a presença d’Ele junto de nós, mas reconhecemo-nos a nós mesmos no Seu seguimento e na Sua escuta e reconhecemos o elo que nos liga a Ele – e que conforma a nossa experiência fundamental como Igreja.  E neste reconhecimento abrimo-nos à esperança radical da permanência de Cristo conosco até o fim dos tempos, sempre alimentados por Ele, pelo Pão da Vida. Com ele caminhamos e n’Ele descansamos da caminhada, seguros de que Ele vela por nós e nos conduz pelo caminho seguro da santidade.


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Referências:

Francisco, Papa. Audiência Geral, Quarta-feira, 24 de maio de 2017. Dicastero per la Comunicazione, Libreria Editrice Vaticana. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2017/documents/papa-francesco_20170524_udienza-generale.html

João Paulo II, Papa. Homilia do Santo Padre, Celebração eucarística na Ilha Da Terceira mm Açores, Angra do Heroísmo (Terceira - Açores), Sábado, 11 de Maio de 1991. Dicastero per la Comunicazione, Libreria Editrice Vaticana. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/homilies/1991/documents/hf_jp-ii_hom_19910511_azzorre.html

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