MISERICORDIAR


Convidando os fiéis a não ficarem presos às paredes da paróquia, mas a irem ao encontro das pessoas em suas mais diversas necessidades de modo a fazê-las conhecer efetivamente o Amor do Pai, o Papa Francisco, em seu livro O Nome de Deus é Misericórdia, inspira o surgimento de “uma Igreja que esquente o coração das pessoas com a cercania e a proximidade”. No mesmo livro, ele cita textualmente as palavras de seu antecessor Bento XVI: “A misericórdia é, na realidade, o núcleo central da mensagem evangélica, é o próprio nome de Deus, o rosto com que ele se revelou na Antiga Aliança e plenamente em Jesus Cristo, encarnação do amor criador e redentor. Este amor de misericórdia ilumina também o rosto da Igreja e se manifesta tanto mediante os sacramentos – concretamente o da reconciliação – como com as obras de caridade, comunitárias e individuais. Todo o que a Igreja diz e faz manifesta a misericórdia que Deus sente pelo homem”. A Misericórdia deve estar refletida nas ações dos católicos; devem estas como que espelhar o cuidado de Deus pelos mais necessitados, através de ações generosas e efetivas, como nos lembra o Papa argentino ao propor, no texto da Bula supracitada, que façamos “a experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática. Quantas situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo atual! Quantas feridas gravadas na carne de muitos que já não têm voz, porque o seu grito foi esmorecendo e se apagou por causa da indiferença dos povos ricos.
A experiência da misericórdia deve ser, para nós, um movimento que nasce da assunção, diante de Deus, de nossas próprias misérias e da reconciliação com Ele por meio do encontro pessoal, em direção ao nosso próximo, a quem regalamos a misericórdia – por meio de atitudes e ações – que temos recebido do Pai. A misericórdia não é algo apenas pessoal, muito embora nasça da experiência íntima com o perdão de Jesus e da mudança de vida; ela é algo que nos impulsiona a sair de nós mesmos, a sermos outros Cristos para os demais, a darmos testemunho da obra maravilhosa operada pela Trindade em todas as áreas de nosso ser. Isso se torna evidente na escolha do lema do Ano Santo da Misericórdia (“Misericordiosos como o Pai”), retirado do ensinamento basilar de Jesus no Evangelho de Lucas: “Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso” (6, 36). O amor de Deus, manifestado na transformação interior que ele realiza em nós, deve ser testemunhado na nossa ação cotidiana, deve ser implementado em mudanças que atinjam a sociedade como um todo, especialmente os mais carentes, os mais necessitados. A experiência da misericórdia não acaba com a peregrinação às Portas Santas, mas ali começa: as obras de misericórdia que a Igreja nos propõe devem ser a consequência natural do novo que Deus realiza em nós. O Pai é misericordioso não somente em nós, mas através de nós.
Na Parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 29-37), Jesus nos ensina que o mandamento divino do amor não se encerra apenas na relação pessoal entre Deus e o homem, mas se aperfeiçoa e se plenifica na relação entre este e o seu “próximo” (como consequência natural daquela). E quem seria o meu próximo?, perguntam a Jesus, que ilustra a sua resposta narrando o cuidado que o samaritano teve com o judeu ferido por um assaltante que aquele havia encontrado na estrada: “chegou junto dele, viu-o e moveu-se de compaixão” (10,33). O doutor da lei, interlocutor de Jesus, chegou à conclusão de que o próximo do homem da estória havia sido “aquele que usou de misericórdia para com ele”. Jesus, em resposta, interpela-o: “Vai e, também tu, faze o mesmo”. Nós, que recebemos a misericórdia do Pai cotidianamente em nossa vida espiritual e religiosa, somos igualmente convidados a “usar de misericórdia” com os nossos semelhantes, a sermos compassivos com as dores daqueles que sofrem. Cristo não nos chama a uma fé puramente pietista e alienada, concentrada apenas em fórmulas devocionais e individualistas, mas a sermos um sinal palpável do amor caloroso de Deus na vida e na história dos homens, intervindo na realidade concreta dos indivíduos e indo ao encontro de suas misérias, sanando-as o mais possível.
Aqui percebemos o real significado do neologismo criado pelo Papa Francisco: misericordiar. Misericordiar é regalar misericórdia, é tornar concreta a experiência de misericórdia no seio da Igreja, é assentá-la em atos palpáveis, generosos, acolhedores. É a própria vivência da compaixão naquilo que ela tem de mais frutífero: a mudança, a transformação da realidade, a transfiguração do rosto sofrido do homem no rosto glorioso de Cristo, através do resgate de sua dignidade de filho de Deus. Uma resposta amorosa do cristão em contraposição a um tempo de desumanização, como nos diz Francisco: “A fragilidade dos tempos que vivemos é também esta: crer que não existe possibilidade alguma de resgate, uma mão que te levanta, um abraço que te salva, que te perdoa, te inunda de um amor infinito, paciente, indulgente; te põe de volta a caminho”. A “manifestação dos filhos de Deus” que menciona São Paulo em sua Carta aos Romanos (8, 19) é a manifestação da misericórdia do Pai travestida em anúncio, em gestos, em ações efetivas de caridade, na doação pessoal de cada cristão de suas potencialidades e seus dons a serviço da implantação do Reino de Deus entre os homens.
A misericórdia que o mundo necessita apenas começa a ser delineada na vida do católico, a partir da experiência renovadora do perdão de Deus no sacramento da reconciliação. Este retorno ao Pai por meio de uma vida transformada é apenas o primeiro passo de um grande e desafiador processo a ser implementado por todos nós: levar a humanidade a enxergar e a experimentar a misericórdia de Cristo através de nosso testemunho e de nossas ações. Que o ato de “misericordiar” seja o emblema da vida concreta do cristão em todos os contextos e ambientes, e não apenas um modismo passageiro no interior da Igreja. O homem que sofre deseja receber a centelha do amor de Deus em suas vidas, e somos nós, católicos, os responsáveis por propiciar esta experiência de amor.


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