TOTA MEA


Sempre que nos recordamos da profundidade da fé mariana de São João Paulo II, é impossível não mencionarmos o famoso lema de seu pontificado – Totus Tuus Mariae – o qual serviu de inspiração para muitos católicos em seu caminho de crescimento em intimidade com Nossa Senhora. A declarada devoção a Nossa Senhora de Fátima, de quem o papa afirmou a autoria do milagre que lhe salvou a vida depois do atentado sofrido em 1981, e o acento marcadamente mariano de seus escritos e alocuções apenas confirmavam o que a força do lema transmitia. A frase foi retirada do Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, escrito por São Luís Maria Grignon de Monfort, em cujo texto se lê: “Tuus totus ego sum, et omnia mea tua sunt – Sou todo vosso e tudo o que tenho vos pertence” (§ 233). Como forma concreta desse amor a Maria no exercício do seu ministério petrino, o Papa consagrou o mundo ao Imaculado Coração de Maria ainda em 1981. Na ocasião, o santo rezava: “Tomai sob a Vossa proteção materna a inteira família humana que, com enlevo afetuoso, nós Vos confiamos, ó Mãe”. Da mesma forma como, pessoalmente, ele havia experimentado o poder da intercessão de Nossa Senhora em sua vida e havia sido formado por sua ação educadora, o papa polonês incentivava a que todos os fiéis assumissem a maternidade de Maria em suas vidas como caminho que leva a Cristo e à Trindade. Seguindo os passos de São Luís, ele entendia que, ao entregar-se totalmente nas mãos da Mãe de Deus, ele assumia o caminho de Maria como “caminho fácil, curto, perfeito e seguro para chegar à união com Nosso Senhor, e nisto consiste a perfeição do cristão” (Tratado da Verdadeira Devoção à santíssima Virgem, § 152).
O Totus tuus, como forma de consagração total a Cristo pelas mãos de Maria, tem como base bíblica a passagem do evangelho de João em que Maria se põe aos pés da cruz de seu Filho moribundo. Diz o texto evangélico: "Quando Jesus viu sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: Mulher, eis aí teu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí tua mãe." (19, 26-27). O uso dos pronomes possessivos indica uma vinculação espiritual profunda, havida por mandado expresso do Redentor, entre a Mãe de Deus e o Discípulo Amado. A maternidade de Maria, até aqui estabelecida apenas em relação à pessoa de Jesus, é ampliada sobre toda a humanidade redimida por Ele: ela não era somente a Mãe do Verbo, mas tornava-se também Mãe do que se vinculariam, na Igreja, a Ele. Assim como, por seu “sim” dado na Anunciação, ela havia se tornado Mãe da Cabeça da Igreja, ela assumia, agora no Calvário, a maternidade sobre os membros desta. Segundo as palavras de São João Paulo II, “se a maternidade de Maria em relação aos homens já tinha aflorado e se tinha delineado em precedência, agora é claramente precisada e estabelecida: ela emerge da maturação definitiva do mistério pascal do Redentor” (Redemptoris Mater, § 23). A maternidade de Maria, na ordem da graça, sobre todos os homens é fruto excelso da própria redenção operada por Jesus por Sua morte e ressurreição. Ela, a primeira redimida, assume para si o cuidado maternal sobre todos aqueles que, dali em diante, seriam salvos pela cruz de Cristo a partir do batismo. “A Mãe de Cristo, encontrando-se na irradiação direta deste mistério que abrange o homem ― todos e cada um dos homens ― é dada ao homem ― a todos e cada um dos homens ― como mãe” (São João Paulo II, Redemptoris Mater, § 23).
É interessante observar que o próprio João, ao descrever a cena em seu evangelho, não se põe nominalmente como personagem da ação. De fato, ao colocar o discípulo amado como o sujeito sobre quem é incumbida a maternidade de Maria, ele parece indicar, neste papel, todos aqueles discípulos de Jesus pertencentes a Sua Igreja. Todos nós, que permanecemos no amor de Cristo (cf. Jo 15, 9), somos seus discípulos na fidelidade à Sua mensagem e na propagação da Sua misericórdia. E todos nós somos, outrossim, objetos do Seu amor: "Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amo. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos" (Jo 15, 12-13). Sendo discípulos amados de (e por) Cristo, somos merecedores da graça de ter Maria por Mãe. Para Santo Agostinho, Maria “é verdadeiramente Mãe dos membros (de Cristo)..., porque cooperou com o seu amor para que na Igreja nascessem os fiéis, membros daquela cabeça” (De S. Virginitate, 6: PL 40, 399). Sendo, portanto, filhos de Maria, somos propriedade dela, pertencemos a ela: Mãe, eis aí o teu filho. Nessa filiação a Maria, nos colocamos sob sua ação formadora e aos seus cuidados, para que ela nos leve a uma vida de união com Jesus: “‘(...) Sou todo vosso e tudo o que tenho vos pertence’, ó meu amável Jesus, por Maria, vossa Mãe Santíssima” (Tratado da Verdadeira Devoção à santíssima Virgem, § 233). Quanto à relação pessoal havida entre cada cristão e Maria, São João Paulo II ensina ainda: “É algo essencial à maternidade o fato de ela envolver a pessoa. Ela determina sempre uma relação única e irrepetível entre duas pessoas: da mãe com o filho e do filho com a mãe. Mesmo quando uma só «mulher» é mãe de muitos filhos, a sua relação pessoal com cada um deles caracteriza a maternidade na sua própria essência. Cada um dos filhos, de fato, é gerado de modo único e irrepetível; e isto é válido tanto para a mãe como para o filho. Cada um dos filhos é circundado, de modo único e irrepetível, daquele amor materno em que se baseia a sua formação e maturação em humanidade” (Redemptoris Mater, § 45). A Mãe de Deus nos ama com um amor exclusivo, pessoal, único, e nós lhe devotamos em reposta um amor com a mesma especialidade, notadamente quando nós nos consagramos a ela de maneira total. Quando afirmamos ser posse sua, por uma vida de consagrado fiel, deixamos que todo o nosso ser e toda a nossa vida sejam assumidos e guiados por sua ação maternal. Este é o sentido último do Totus Tuus.
A contrapartida também é válida: da mesma forma que “pertencemos” a Maria, ela também nos “pertence”. Se há um Totus Tuus, há também um Tota Mea. Diz-nos o evangelho de João: "Depois [Jesus] disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. E dessa hora em diante o discípulo a levou consigo" (19, 27). Nós somos confiados, como filhos, ao amor maternal de Maria e ela nos é confiada como Mãe: somos chamados a cumprir o mandado de Jesus de receber Maria como alguém nosso, entre as realidades que nos dizem respeito, como herança perfeita e predileta dada pela misericórdia divina. Assim como somos chamados, no exercício de nossa filiação amorosa, a uma disponibilidade total à graça materna de Maria, ela também – com a mesma prontidão ao Pai dada na Anunciação – se coloca, sob a cruz, com disposição amorosa para nos amar e educar. Da mesma maneira que somos totalmente dela filhos, ela é totalmente nossa mãe: “O Redentor confia sua Mãe ao discípulo e, ao mesmo tempo, dá-lha como mãe. A maternidade de Maria que se torna herança do homem é um dom: um dom que o próprio Cristo faz a cada homem pessoalmente. O Redentor confia Maria a João, na medida em que confia João a Maria” (Redemptoris Mater, § 45). Devemos, pois, tomar posse desse dom maravilhoso em nossas vidas da mesma forma como cantava São João da Cruz: “Meus são os céus e minha é a terra; (...) os anjos são meus e a Mãe de Deus e todas as coisas são minhas; e o mesmo Deus é meu e para mim, porque Cristo é meu e todo para mim”.
O estabelecimento do amor entre a Mãe e nós, seus filhos, se dá exatamente nessa doação mútua. Ela se doa inteiramente a nós em nossa educação e santificação e nós nos doamos inteiramente a ela no exercício pleno da submissão e da filiação. Ela, por sua santidade e caridade, não nos recusa nunca seu amor a nós; nós, ao contrário, estamos sempre crescendo no desafio de oferecer-lhe o nosso coração e a nossa vida. Ela já é Toda Nossa, entregada a cada um de nós em seu carinho de Mãe e em obediência ao mandado de seu Filho. A nós cabe cumprir a nossa parte como discípulos amados de Jesus: aceitá-la como nossa Mãe, rendendo-lhe os louvores e o amor que lhe são devidos por sua presença majestosa em nossas vidas, e levá-la conosco, onde quer que estejamos e atuemos. Somos chamados, pois, a sermos Todos Dela, filhos que repetem diariamente o conselho que ela nos deixou sobre Jesus: “Fazer tudo o que ele vos disser” (Jo 2, 5).

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