TRANSFIGURAR O MUNDO
O
poder das imagens é patente na sociedade contemporânea, especialmente nas redes
sociais; a força simbólica delas determina o valor que é dado às pessoas e as
coisas num momento em que, mais do que ser,
o importante é mostrar. Nos posts, nos stories, nos memes, nas publis, o que é válido é o valor de
face, estritamente superficial mas mercadologicamente atraente e lucrativo, e
tudo o que vai além das aparências não tem peso para o público nem atrai
anunciantes e seguidores. Estamos acostumados a essa miríade de fotos e vídeos
que se arrastam ante os nossos olhos, cada um deles feito sob medida para
atrair a nossa atenção, por mínima que seja, e para nos sugestionar para o
consumo, para a satisfação dos nossos desejos e para narcotizar os nossos
sentidos. Vemos muitas coisas, mas, diante de tantas sugestões, deixamos de enxergar; observamos tudo ao nosso
redor, mas, por perdemos a sensibilidade em razão de tantos atrativos, deixamos
de contemplar. O olhar esvazia-se ante
tantos chamarizes, e é necessário que voltemos a pôr nossa atenção em
realidades que transcendam o nosso cotidiano fugaz – superando em beleza e em
profundidade o que está diante de nós – e nos elevem a realidades mais
profundas e duradouras.
Na
experiência da Transfiguração, Cristo toma consigo Pedro, Tiago e João e sobe
ao monte para orar (cf. Lc 9, 28). Em meio às inúmeras atividades da missão
evangelizadora, Jesus se faz acompanhar de seus discípulos mais achegados e os
leva a uma experiência de subida a uma realidade mais elevada, acima das
circunstâncias cotidianas. E o convite é feito com um intuito muito claro: a
vivência da ascensão, da elevação, é para que eles possam orar. A proximidade com Deus, objetivo maior da oração, requer esse
afastamento, esse distanciamento da vida mais imediata, conduzida mais pelos
sentidos e pela inteligência que pela sensibilidade espiritual, para embarcamos
numa experiência de transcendência, de ampliação de horizontes que somente a fé
é capaz de nos proporcionar. Para enxergarmos mais, mais amplamente e mais alto, necessitamos subir às alturas divinas,
a fim de enxergamos a nós mesmos, às coisas e às pessoas com o olhar que
somente Deus possui. Para contemplar a realidade a partir d’Aquele que a
constituiu e a mantém, a realidade em seu caráter verdadeiro, belo e bom, é
preciso sair do ordinário da nossa visão limitada – e vermos com outros olhos,
os olhos do amor incondicional.
Durante
a oração, “alterou-se o aspecto do seu
rosto [de Jesus] e as suas vestes ficaram de uma brancura refulgente” (Lc
9, 29). Cristo – acompanhado de Moisés e Elias, os quais representam a força da
Aliança firmada por Deus com Seu povo, assim como seu caráter profético –
manifesta aos discípulos a sua verdadeira face,
o Seu rosto glorioso. Ele dá aos
discípulos, e a cada um dos que nos abrimos à experiência de subir o monte para
nos aproximarmos de Deus por meio da oração, a vivência da contemplação da Sua glória e da Sua Graça. “A graça acompanha as provas do caminho terrestre do homem e da Igreja,
acompanha os sofrimentos e as fadigas, e também as quedas. Invade-os assim,
como no monte da Transfiguração, aquela luz que penetrou o corpo terrestre de
Cristo. Ela traz em si o prenúncio da ressurreição”, nos diz São João Paulo
II. A visão do esplendor divino de Jesus assegura-nos a manifestação do poder
misericordioso e amoroso de Deus nas circunstâncias da nossa vida comum, muitas
vezes desafiadoras e duras, e nos dá a certeza de que, se nos mantivermos
unidos a Ele numa vida de profunda intimidade e amizade, compartilharemos com Ele
dessa mesma augusta beleza. Diz-nos Bento XVI: “Deus é luz, e Jesus deseja doar aos seus amigos mais íntimos a
experiência desta luz, que habita n’Ele. Assim, depois deste acontecimento,
será neles luz interior, capaz de os proteger dos assaltos das trevas. Também
na noite mais escura, Jesus é a lâmpada que nunca se apaga”.
São
João Paulo II falava de uma civilização
da imagem. Efetivamente, experimentamos uma época em que a imagem, por si
só, impõe-se como critério de avaliação dos homens e das suas realidades. Vemos
nossos semelhantes retratados nas imagens, mas elas não nos revelam mais do que
indivíduos alquebrados sob o peso de sua própria soberba, narcisicamente embriagados
e profundamente desfigurados. Pelo
fato de não nos abrirmos à contemplação das belezas eternas, de evitarmos observar
a maravilhosa manifestação da beleza e da santidade de Deus por uma via de
contato com o Poder que vem do Alto, perdemos os critérios de averiguação do
que belo – em nós mesmos, em nosso próximo e em todo o criado. Estamos
entorpecidos pela experiência de vermos nossas glórias – mesquinhas, limitadas,
condicionadas pela aprovação dos outros, pelas quais prostituímos a nossa verdadeira
beleza – e, assim, não enxergamos o autenticamente Belo. Ao nos afastarmos de
Deus e nos medirmos pelos critérios puramente humanos, eivados de vaidade e
egoísmo, embrutecemos a nossa sensibilidade e desperdiçamos a oportunidade de,
ao ver a Jesus Transfigurado, sermos também nós transfigurados n’Ele.
A
nossa missão, pois, como discípulos de Cristo, uma vez transfigurados por Ele
por meio da oração e da contemplação cotidiana, é transfigurarmos a vida que nos rodeia, todos os espaços e todas as
circunstâncias. A mesma glória e esplendor que experimentamos na nossa visão
permanente da graça de Jesus, pela adesão diária ao Seu amor, que nós a
possamos transmitir, uma vez por ela interiormente transformados, a todos os
ambientes e a todas as pessoas. Da nuvem no alto do monte em que estavam,
petrificados de pavor pela manifestação poderosa do rosto de Cristo, os
discípulos ouviram a voz do Pai: "Este é o meu Filho muito amado; ouvi-o!".
Deus nos manda, portanto, dar testemunho da graça que transparece na vida e no
exemplo de Seu Filho, a fim de que, unidos a Eles, possamos levar a Sua beleza,
Sua verdade e Sua bondade ao mundo. Pois, como nos adverte São Paulo: "a criação aguarda ansiosamente a manifestação
dos filhos de Deus" (Rm 8, 19).
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Bento XVI, Papa. Angelus (Domingo, 4 de
Março de 2012). Libreria Editrice Vaticana, 2012. Disponível em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/angelus/2012/documents/hf_ben-xvi_ang_20120304.html.
Acesso em: 13 mar. 22.
João Paulo II, Papa. Angelus (Domingo, 2
de Março de 1980). Libreria Editrice Vaticana, 1980. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/angelus/1980/documents/hf_jp-ii_ang_19800302.html.
Acesso em: 13 mar. 22.
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