A CRUZ E A ESPADA

 


"Eis por que sinto alegria nas fraquezas, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições, no profundo desgosto sofrido por amor de Cristo. Porque, quando me sinto fraco, então é que sou forte". A mensagem fundamental de São Paulo em sua segunda carta à comunidade de Corinto (12, 10) lembra a cada cristão que é a força divina que o sustenta em todas as dificuldades enfrentadas em sua vida. Exatamente porque nos experimentamos fracos que o poder do Alto vem em nosso socorro e nos permite vivenciar concretamente o amor misericordioso de Deus. Somos fortes porque a força que nos impulsiona não é nossa; vencemos porque a vitória sobre o mal e o pecado, que nos tentam, está acima de nós. Essa certeza que nos dá esperança é exemplarmente observada não apenas na vida de Paulo de Tarso, mas também na de São Pedro. Na biografia de ambos, percebe-se que o amor divino permitiu-lhes crescer e tornar-se fecundos principalmente pela consciência profunda – que os dois compartilharam ao entrar, cada um a seu modo, em contato com a pessoa de Cristo – de suas próprias misérias e incapacidades individuais. Foram homens fortes na fé e no testemunho porque se sabiam fracos e, pois, dependentes do agir de Jesus em seu interior.

Pedro provou da intimidade de Jesus ao longo dos três anos de Sua vida pública, vendo a mensagem evangélica ser propagada, o número de discípulos aumentar, os milagres se sucederem e, dessa forma, o Messias agir profundamente na vida do povo. No entanto, nada disso o impediu de, na hora decisiva, em que Cristo foi capturado pelos chefes religiosos da fé hebraica e preso, negá-lo veementemente por três vezes. O mesmo Pedro que proclamara de forma categórica "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo! " (Mt 16, 16) e que, diante da desistência de muitos antes a mensagem desafiadora do Mestre, afirmara "Senhor, a quem iríamos nós? Tu tens as palavras da vida eterna. E nós cremos e sabemos que tu és o Santo de Deus! " (Jo 6, 68-69) é, no entanto, o mesmo que, ao ser pressionado pelas circunstâncias, dissera "Não conheço esse homem de quem falais" (Mc 14,71). O mesmo Simão que havia se tornado, pelas palavras de Jesus, "Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja" (Mt 16,18), é aquele que "rompeu em soluços" (Mc 14, 72) ao constatar a fraqueza e indignidade com que se desvencilhara da responsabilidade com Cristo em Sua Paixão. A experiência da debilidade humana frente às exigências da adesão ao projeto divino de redenção permite a Pedro reavaliar o seu papel, diante do que lhe propusera Jesus, com confiança e humildade: uma vez tocado pela graça da misericórdia, sendo derramada na Cruz, ele consegue sair do desespero da morte e entrar na esperança da Ressurreição. Assim, tem ele chance de reafirmar três vezes o seu amor ao Cristo Ressuscitado (cf. Jo 21, 15-17) e, na experiência corajosa da Igreja nascente, proclamar sua fé à frente dos irmãos (At 2, 14-36).

Também Paulo vê sua vida transformada pela ação de Jesus: ele, que "havia aprovado a morte de Estêvão", "devastava a Igreja" (At 8, 1-3) e "respirava ameaças e morte contra os discípulos do Senhor" (At 9, 1), após radical experiência com Cristo a caminho de Damasco e tornar-se discípulo fiel, afirma ser “o menor dos apóstolos” e não ser “digno de ser chamado apóstolo" (1 Cor 15, 9). A mesma intransigência com que havia perseguido a Igreja, em nome da defesa da religião hebraica e dos ensinamentos bíblicos aprendidos na escola de Gamaliel, é a que demonstra na fundação das diversas comunidades cristãs e na difusão do Evangelho entre os gentios. A experiência no caminho a Damasco tirara-lhe as escamas dos olhos (cf. At 9, 18) que lhe impediam de reconhecer o poder divino manifestado na pessoa de Jesus e testemunhado na vida e na palavra dos Seus discípulos. O senhorio de Cristo na sua vida o impele a dar a conhecer o Mestre a todas as pessoas, num raio de ação missionária cada vez mais amplo e com um discurso cada vez mais incisivo e pungente: "Anunciar o Evangelho não é glória para mim; é uma obrigação que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!" (1 Cor 9, 16).

Tanto Pedro como Paulo tornaram-se figuras fundamentais na consolidação da Igreja nascente, por sua ação e seu testemunho. Irmanam-se na experiência concreta com o Cristo Ressuscitado, que os reveste com Sua misericórdia, a qual os leva a provar do poder divino que suplanta a debilidade humana. Despojados de toda hipocrisia e soberba, apresentam-se diante da missão que lhes confia Cristo com a pobreza e simplicidade do verdadeiro discipulado, entendendo que a ação transformadora – na vida dos homens, em nome da Igreja ao mesmo tempo solidamente fincada e peregrina no mundo – não é deles, mas de Cristo agindo neles. Pedro, fugindo amedrontado diante da perspectiva da Cruz, acaba por abraçá-la fervorosamente ao final da vida, experimentando nela o martírio; Paulo, brandindo a espada em defesa da fé hebraica, troca-a pela espada da fé em Cristo e, assim, acaba por sucumbir ao fio da espada pela qual oferece-se em sacrifício. Pedro, como sólido alicerce da Igreja Perene, e Paulo, como vivaz propagador da Igreja em Caminho, são como setas convergindo no seio da única – e sempre a mesma – Igreja que nasce do lado aberto de Jesus, a qual tem naqueles as colunas que a sustentam.

Cada cristão, à luz dos exemplos de Pedro e Paulo, é chamado dar testemunho da fé no Ressuscitado como enamorado de Deus, conforme a lição dada pelo Papa Francisco:  “Foi assim, como enamorados, que Pedro e Paulo anunciaram Jesus. Pedro, antes de ser colocado na cruz, não pensa em si mesmo, mas no seu Senhor e, considerando-se indigno de morrer como Ele, pede para ser crucificado de cabeça para baixo. Paulo está para ser decapitado e pensa só em dar a vida, escrevendo que quer ser «oferecido como sacrifício» (2 Tim 4, 6). Isto é profecia… e não palavras. Isto é profecia, a profecia que muda a história”. Assumindo a cruz, como Pedro, sem medo e com audácia e entendendo ser por ela que nos unimos esponsalmente com Cristo, lutamos, em nome d’Ele, pela redenção dos homens. Brandindo a espada da Palavra e indo ao encontro, como Paulo, dos homens que caminham nas periferias existenciais, hoje mais do que nunca, deixamo-nos conduzir pelas vias que nos levam a estar com Jesus e a nos transformarmos n’Ele. Pela cruz e pela espada, tornamo-nos, pois, um segundo Cristo no meio da humanidade sedenta de Deus e desejosa da luz que só Cristo, em e a partir de nós, pode irradiar.

 

Referência:

FRANCISCO, Papa. Homilia da santa missa e bênção dos pálios para os novos arcebispos metropolitanos na solenidade dos santos apóstolos Pedro e Paulo. Santa Sé, 2020. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2020/documents/papa-francesco_20200629_omelia-pallio.html. Acesso em: 03 de jun. de 2021.

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