PERMANESER
Sempre achei muito
coerente (e instigante) da parte de Deus referir-se a Si mesmo no Evangelho de
São João como “Palavra”: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava junto
de Deus e a Palavra era Deus”. Palavra é realidade que contém significado e transmite
uma mensagem; é veículo do sentido e da realidade dos quais se origina e
carrega em si mesma um valor que lhe é próprio. No caso do Verbo Eterno (a
Palavra por excelência), ser palavra significa ser ao mesmo tempo mensagem e o
próprio mensageiro. Jesus, como Filho de Deus, é Palavra encarnada, concreta,
real, que vem ao mundo transmitir o amor do Pai, sendo, ele mesmo, esse Amor
presente no meio de nós. Todas as palavras, em seu sentido etimológico e
sintático, carregam em si mesmas uma realidade semelhante. Elas transmitem um
valor, têm um peso concreto em nossa vida cotidiana. Por esta razão, pois, Deus
quis que sua Mensagem ficasse resguardada numa Palavra, a Palavra de Deus, que
nós temos compilada nas Sagradas Escrituras.
E já que estamos
falando de palavras, tomando-as inclusive em seu sentido gramatical, é
interessante observar o valor que nelas se esconde para a nossa própria vida
espiritual. Deus, como já foi dito, é Palavra; em outras traduções bíblicas,
nós o vemos como Verbo. Verbo encarnado, Verbo de Deus em nosso meio, o próprio
Cristo que se faz homem. Também o fato de ser Verbo é pedagogia do Pai para
nós: é ação criadora, é movimento contínuo de amor. E aqui é oportuno lembrar o
que nos diz a gramática sobre o valor sintático do verbo, pois também aí se
podem tirar valiosas lições para a dinâmica do nosso relacionamento com Deus.
A gramática nos diz
que, quanto à predicação, os verbos podem ser intransitivos, transitivos ou de
ligação. Os verbos intransitivos independem de complemento para a sua
significação completa. São aqueles utilizados, por exemplo, para designar os
fenômenos da natureza (chover, nevar, garoar, ventar). Os verbos
transitivos, ao contrário, necessitam de um complemento para que seu sentido
cubra eficácia plena: são os chamados objetos (diretos ou indiretos). Já que
estamos no campo da vida espiritual, não custa nada usar verbos mais óbvios:
nós adoramos a Deus e Ele nos ama. Ele, Deus, é objeto de nossa
adoração humilde e nós somos objetos de Seu amor. Como se pode perceber, os
verbos intransitivos e transitivos expressam uma ação. Na dinâmica
sujeito-objeto, essa ação é determinante para identificar o relacionamento
entre esses dois entes da frase. Tomemos os mesmos verbos do exemplo como
ilustração: entre Deus e nós há uma relação profunda, na qual nós nos dispomos
a adorá-lO como nosso único Senhor e Pai e Ele, em Sua infinita
Misericórdia, nos ama com amor incondicional.
Diferentemente dos
dois primeiros, os verbos de ligação exprimem não uma ação ou um movimento, mas
um estado. Na frase, eles ligam o sujeito a um predicativo, que dá a
aquele um qualificativo especial. No colégio, nós aprendemos a decorá-los: ser,
estar, ficar etc. Podemos dar um exemplo ainda na seara religiosa: dizem os
místicos e os santos que nós, em nosso itinerário espiritual, somos chamados a estar
sempre na presença de Deus e a ficar vigilantes contra o pecado e o
desânimo. É o estado do sujeito que conta, não os movimentos ou ações que
pratica. Da mesma maneira, nos relacionamentos pessoais muitas vezes não é o
agir que importa, mas a situação interior do indivíduo. Nossa relação com Deus
não é diferente: muito mais do que ações ou gestos (os quais não deixam de ter
importância, frise-se), o que deve nos motivar diante da presença do Pai é o que
levamos dentro de nós, a nossa própria situação existencial, o nosso estado
emocional, psíquico e espiritual. Por esta razão, nossa meditação aqui está
centrada nos verbos de ligação, daquelas palavras que ligam o sujeito (nós, no
caso) ao nosso predicativo (o próprio Cristo, o rosto do Pai para nós).
Foi-nos dito sempre
que é preciso estar na presença de Deus. Isso é repetido pelos santos,
pelos místicos, pela Palavra de Deus e pela Igreja. É necessário que nós estejamos
sempre unidos à Trindade e que estejamos sempre em oração,
vigilantes e dóceis aos anseios e ao querer do Eterno Pai. Estar na
presença de Deus nos permite gozar da Sua misericórdia e receber dela as graças
necessárias para o nosso crescimento pessoal. O verbo diz-nos, por seu
significado, muito ao coração no que diz respeito a nossa vida interior. Por
outro lado, o verbo estar exemplifica também, infelizmente, o que há de
pior no coração do homem: a inconstância, a infidelidade, a falta de
comprometimento com as coisas do Alto. Queremos estar em Deus, junto
d’Ele, mas também no mundo, justo das coisas que este nos oferece; estamos
em muitos lugares, mas muitas vezes estamos indiferentes à realidade que
nos circunda; estamos perto de muitas pessoas, mas não estamos
(no sentido de relacionar-se) com elas, vinculados a elas. Estar é
próprio do transitório, do fatual, daquilo que não persiste, que não persevera.
Estamos, mas nem sempre ficamos, continuamos,
permanecemos. Pior: estamos, mas quase nunca somos.
Jesus nos fala,
ainda no Evangelho de João: “Assim como o pai me amou também eu vos amei.
Permanecei no meu amor” (15,9). Esta frase é dita logo após a proclamação
da parábola da videira, na qual Jesus ensina: “Permanecei em mim, como eu em
vós. (...) Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permanece em mim e eu
nele produz muito fruto” (15, 4-5). A mesma ideia é repetida na Primeira
Carta de João: “Deus é Amor: aquele que permanece no amor permanece em Deus
e Deus permanece nele” (4, 16). Permanecer também é verbo de
ligação, só que mais completo: descarta o passageiro, o transitório, o parcial,
e abraça o que é permanente, o que perdura, o que é sólido. Aquele que permanece
em Deus é aquele que persiste, que se mantém alerta diante das fraquezas,
que está profundamente alicerçado na amizade com Cristo. Esta permanência se dá
pela nossa entrega diária, fiel e confiante a Deus através da oração e na
prática das virtudes: “Se observais meus mandamentos, permanecereis
no meu amor, como guardei os mandamentos de meu Pai e permaneço em meu
amor” (Jo 15, 10). A permanência em Deus é graça imerecida dada por Ele mas
também é batalha pessoal nossa, através da perseverança e da fidelidade. Aquele
que ama a Deus recebe a graça de ser santuário vivo dele: “Se alguém me ama,
guardará minha palavra e o meu Pai o amará e a ele viremos e nele
estabeleceremos morada” (Jo 14, 23). Uma vez que permanecemos com
Deus, Ele faz de nós seu templo, onde Ele permanece.
Permanecendo em
Deus, somos chamados a sermos n’Ele, à união íntima com Ele. A isso
chamamos amizade: ser amigo de Deus significa um amor tão entranhado que o
amante e o Amado formam uma só realidade. Jesus pede ao Pai esta graça especial
para seus discípulos, para aqueles que efetivamente permaneceram com
Ele: “(...) a fim de que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em
ti, que eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste”. A
presença do Cristo no mundo é estendida na vida e no testemunho daqueles que O
seguem. O cristão é, efetivamente, um outro Cristo na sociedade, perpetuando,
por sua amizade com Deus, a mensagem daquele que morreu e ressuscitou por todos
nós. “Aquele que confessa que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele e
ele em Deus”. Somos chamados a esta amizade inquebrantável com Cristo, a
não só estarmos com Ele, mas sermos n’Ele. Ou melhor: a sermos
Cristo. A abandonarmo-nos em seu oceano de amor e deixar que ele ocupe todos os
espaços de nosso coração, de nossa alma e de nossa vida. Dessa forma, seremos
capazes de dizer com São Paulo: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que
vive em mim” (Gl 2, 20). Essa união com Cristo permite àqueles que ainda
não experimentaram o amor de Deus terem uma prova de Sua existência e de Sua
grandeza: “Dei-lhes a glória que me deste, para que sejam um, como nós somos
um: eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e o mundo
reconheça que me enviaste e os amaste, como amaste a mim” (Jo 17, 22-23).
Com Cristo e em Cristo, rumamos todos os que cremos n’Ele ao Pai, numa perfeita
união de amor.
Por meio destes
dois verbos de ligação (permanecer e ser), nós nos unimos (como
sujeito) ao nosso verdadeiro predicativo (Cristo), numa sempre renovada
expressão de amor. Nessa relação entre permanência e existência,
que é própria da relação unitiva entre os discípulos e Cristo, nós já não somos
“servos”, porque o servo não sabe o que seu senhor faz, mas somos
verdadeiramente “amigos” (cf. Jo 15, 15). A nossa amizade com Deus é revelada,
enaltecida e explicada por estes dois verbos de ligação, como nos diz a
gramática, ou de união, como nos diz nas Sagradas Escrituras o Espírito Santo,
que “permanece conosco” (Jo 14, 17). Se por palavras (e pelo que nelas é
transmitido) Deus nos revela seu amor, também por meio delas somos livres para
expressar o nosso como contrapartida (ainda que imperfeita, porque impossível
de encontrar no dicionário): todo cristão, para dar testemunho d’Aquele que
vive em si, deve PERMANESER em Cristo em todo tempo e lugar, a fim de chegar a
ser UM com Ele e com o Pai.
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