ATRAVÉS DO ESPELHO
A função
primordial de todo espelho é refletir fidedignamente a imagem que tem diante de
si. Quanto mais polida e translúcida for sua superfície, mais nítido será o
reflexo – e, consequentemente, com maior clareza e exatidão, veremos o objeto
refletido. Ao contrário, se o espelho estiver fosco, sujo ou, pior, quebrado, a
imagem que teremos nele será um pálido registro da realidade. Se o que queremos enxergar no espelho, por
qualquer que seja o seu defeito, não reflete verdadeiramente o objeto a ser
observado, a funcionalidade daquele inexiste. Quando eu me vejo refletido em um
espelho, procuro observar a minha real aparência da maneira mais fiel possível,
com meus defeitos e minhas qualidades. Os primeiros, eu os procuro retocar e
melhorar tanto quando possível; as segundas, eu as procuro realçar para que possam
luzir de maneira mais intensa. Para que eu possa aparentar beleza exterior aos
demais, meu parâmetro é o que o espelho me diz: o que ele mostra é o que
preciso saber para, consertando o defeituoso e aprimorando o belo, revelar ao
outro o melhor de mim.
Na vida
interior, acontece a mesma coisa. Há, dentro de cada um de nós, uma espécie de
espelho que me diz exatamente quem eu sou
e como eu me encontro e me ajuda
a balizar a vida em vista de embelezar
as virtudes – no sentido de louvar e agradecer pela sua existência e torná-las
exemplares – e ocultar – não no sentido de esconder,
mas no sentido de refrear ou mesmo de
aniquilar – os vícios. Não há espelho
mais transparente do que esse: todas
as nossas luzes e nossas sombras são reveladas, sem retoques, e
cabe a nós ter a coragem de encararmos com ousadia
e sentimento de conversão a imagem
que aquele nos revela. Sem que nos vejamos refletidos pela lente deste espelho,
não poderemos jamais mostrar a beleza que cada um de nós possui e que é para
nós, mais do que nossa verdade exposta,
uma vocação de amor e um sinal evidente da Beleza em Si. Nós,
cristãos, cremos ser templos da Trindade, que nos habita a alma e nos transfigura o coração a fim de que estes
reflitam a beleza de Sua presença
divina em nós. Esta mesma Trindade, Deus presente e atuante nas nossas vidas, é
espelho que reflete, no mais íntimo
da nossa personalidade, não somente a imagem do que temos sido e somos, mas também
e principalmente a imagem do que devemos
ser. E todos nós somos chamados a ser, pela bondade e misericórdia de Deus,
Sua “imagem e semelhança” (Gn 1, 26).
Esta é, em suma, a nossa vocação fundamental: refletirmos Deus em nós como
resultado de O termos assumido em nossos corações – em um processo de conversão que é, fundamentalmente, de transformação interior –, como filhos
que acolhem os ensinamentos de um pai e os encarnam em seu ser e em suas
atitudes.
A qualidade de
refletirmos exatamente a imagem da Presença que habita em nós e que nos leva a
assumi-lA como nosso caminho pessoal de realização é a pureza. Quanto mais pura for uma imagem – no sentido de ser nítida e fiel –, mais clara e autêntica ela será para nós mesmos e para os
outros, que poderão enxergar em nós uma realidade que nos transcende. O ser puro é como um espelho íntegro, limpo e transparente: ele
revela de maneira mais perfeita a própria perfeição que nele se vê refletida.
Quanto mais puro eu for, mais nítida se tornará a Trindade na imagem que eu
reflito dela, por meio do meu ser e das minhas atitudes, pois as minhas
imperfeições terão sido sanadas e as minhas virtudes terão sido cultivadas e eu
poderei, enfim, realçar a beleza que não é outra coisa senão a santidade. Ser santo é ser transparência de Deus, reflexo da Trindade, imagem perfeita de Cristo: a beleza que
vem do Alto é revelada em mim como sua
cópia fiel, “sem mancha nem ruga, nem
defeito algum” (Ef 5, 27). É desejo de Deus ver-Se refletido em mim como em
um espelho, como prova cabal de que Sua paternidade
misericordiosa é acolhida e replicada
em nossa filiação obediente.
No Sermão da
Montanha, Jesus nos diz: "Bem-aventurados
os puros de coração, porque verão Deus!" (Mt 5, 8). Quanto mais puros formos em nossas vidas, melhor refletiremos o Deus que habita em nós
para o próximo e para o mundo e mais santos
nos tornaremos, pois a Trindade não será apenas refletida no nosso ser, mas
também assumida e encarnada nele. O mesmo Deus, cuja
imagem somos – como vocação primordial que nos aponta o caminho do céu –,
revelar-se-á a nós na eternidade em toda a sua magnificência e grandiosidade,
como resultado de nossa fidedignidade
ao que Ele é e revela em nosso interior aqui e agora. Nós, que "vemos como por um espelho,
confusamente", ao procurarmos ser imagens
espelhadas do Pai, Suas transparências,
reflexos de Sua beleza, O veremos um
dia como Ele é, “face a face” (1 Cor
13, 12).
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