PEDRA SOBRE PEDRA
O
seguimento a Cristo exige de nós uma adesão fiel à realidade total de Sua vida,
tanto de Sua mensagem redentora como também de Sua entrega na cruz, que leva a
uma vida nova. O compromisso assumido pelo cristão, a partir do batismo e por
toda a existência, leva-o ao desafio de “revestir-se
de Cristo” (cf. Rm 13, 14) não somente por palavras, mas fundamentalmente
por atitudes e decisões. Ser Cristo e
não apenas anunciar Cristo é o que qualifica
o verdadeiro discipulado, pois a mensagem de Jesus precisa, para servir à
evangelização das pessoas e ao testemunho da validade do Evangelho, encontrar
um lastro de solidez e profundidade na vida de cada fiel. Ou damos testemunho
de Cristo com a nossa vida concreta, lapidando a nossa alma e o nosso coração
com as “duras lições” (cf. Jo 6, 60)
tiradas da Palavra – que são, na verdade, a grande pedagogia amorosa de Deus,
que nos poda para que “possamos dar mais
frutos” (cf. Jo 15, 2) – ou nos tornamos um “caniço agitado pelo vento” (Mt 11, 7), apoiados nas aparências da
nossa própria humanidade ferida, vergada pelo peso de suas infidelidades e
incoerências. A escolha vital por Cristo requer de nós a consciência clara de que o caminho do Evangelho é de cruz e de
ressurreição: para alcançarmos a idade madura na fé, temos de passar pela
escola da dor, da doação e do sacrifício. Uma vez testados na forja da
santidade, que retira de nós a velha humanidade, somos introduzidos na
liberdade de filhos de Deus, “à estatura
da maturidade de Cristo” (Ef 4, 13).
Essa
lição torna-se, para nós, muito concreta e evidente ao nos depararmos com o
exemplo pessoal de São Pedro. No capítulo 16 no Evangelho de São Mateus, diante
da pergunta de Cristo sobre quem diziam os apóstolos ser Ele, Pedro responde: “Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo!” (v.
16). Tem-se aqui uma das mais belas declarações de fé de todo o Evangelho, dita
com toda a espontaneidade e sinceridade características do apóstolo. Ao
perceber a veracidade da afirmação de Pedro, tocado pela crença em Sua pessoa e
Seu poder, Jesus atesta que as palavras daquele lhe são reveladas “pelo Pai que está nos céus” (v. 17). De
fato, a nossa fé em Cristo só pode ser proclamada em nossa vida por uma graça
especial vinda do alto. Crer é ato suscitado pelo Espírito em nós, que nos leva
a descobrir no ordinário da vida o sentido pleno subjacente às coisas, todas
elas criadas e sustentadas pela mão misericordiosa de Deus, a partir da Sua autorrevelação
do Evangelho. Pedro, ao ver as coisas realizadas por Cristo – "os cegos veem, os coxos andam, os
leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, aos pobres é
anunciado o Evangelho” (Lc 7, 22) – em Sua peregrinação junto ao povo,
percebe a marca da presença divina e evidencia a sua crença no Filho do Homem,
a partir do chão simples da sua alma intempestiva. Cristo, ao testemunhar a fé
de Pedro, revela-lhe sua missão no plano salvífico de Deus: "tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra
ela" (Mt 16, 18). A fé em Cristo, testemunhada por nós, seus
discípulos, transforma-nos em pedras que
edificam, em “fermento na massa”
(cf. Mt 13,33), transformando a realidade e o coração das pessoas a partir do anúncio realizado por nosso testemunho
coerente. Edificar o Reino é somar forças, é construir a partir do Evangelho sobre a terra arrasada da descrença
e da desorientação do mundo atual, sedento de valores e da presença de Deus. O
próprio Pedro nos exorta a ser “pedras
vivas”, achegados a Cristo, e nos tornarmos "materiais deste edifício espiritual” que é a Igreja, publicando
"as virtudes daquele que das trevas
vos chamou à sua luz maravilhosa" (1 Pe 2, 5.9).
O
mesmo Pedro, no entanto, ao ouvir da boca de Cristo o anúncio da Sua morte em
Jerusalém e sua posterior ressurreição (cf. Mt 16, 21), se escandaliza e O
interpela: "Que Deus não permita
isto, Senhor! Isto não te acontecerá!" (Mt 16, 22). Efetivamente, o
Cristo crucificado, para o homem contemporâneo (mesmo para muitos cristãos
batizados), continua sendo ainda hoje “escândalo”
e “loucura” (cf. 1 Cor 1, 23), porque
eles não conseguem entender que o caminho que leva ao Pai é um caminho de
crucificação da humanidade decaída apontando
para o surgimento de uma humanidade
renovada no amor e na misericórdia. A dor e a derrota para o homem moderno são
indícios da nossa fraqueza humana, que devem ser evitados por um caminho de
falsa felicidade e autorrealização. O homem aprende, hoje, a ser redentor de si mesmo, mesmo consciente de
que, por suas próprias forças, é incapaz de dar um sentido pleno a sua própria
vida. Sentido este que apenas Cristo, que Se doa totalmente por amor e por misericórdia pela humanidade, oferece na cruz. Ao negar o caminho
de autodoação anunciado por Jesus, Pedro torna-se, neste momento, contrário à mensagem que Aquele vem
trazer ao homem. E é repreendido: "Afasta-te,
Satanás! Tu és para mim um escândalo; teus pensamentos não são de Deus, mas dos
homens!" (Mt 16, 23). Nós nos tornamos pedras de escândalo quando negamos a força redentora do
autossacrifício de Cristo, que comprova o amor misericordioso de Deus pelos
homens, em razão das nossas seguranças e do nosso egoísmo. Ao invés de edificar o Reino, nós o destruímos; ao invés de congregarmos a comunidade, nós
dispersamos.
Entre
estes dois caminhos – o da construção
ou o da ruína – encontramo-nos todos
os que nos empenhamos no seguimento a Cristo e na fidelidade ao Evangelho. A
experiência do pecado – e consequentemente, do afastamento de Deus – provoca em
nós a descrença no poder restaurador e transformador da Paixão de Cristo para a
Igreja e para nossa vida particular. O sacrifício de Jesus, que celebramos e
atualizamos na liturgia eucarística, é o caminho de cura para as nossas mazelas
humanas e via de acesso privilegiado a uma vida de intimidade e comunhão com a
Trindade. Ao negar a salvação que Cristo nos traz, nós retiramos das nossas
vidas a força vital do Evangelho e nos submergimos na angústia de uma
humanidade apequenada na própria imperfeição e miséria. A decisão entre ser pedra de escândalo ou pedra que edifica depende, pois, do
assentimento ao convite que Cristo nos faz: "Se
alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Porque
aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas aquele que tiver
sacrificado a sua vida por minha causa, recobrá-la-á" (Mt 16, 24-25). Revestidos de Cristo, somos chamados a doar
a própria vida com Ele e como Ele, a fim de sermos instrumentos
de Sua misericórdia e bondade e de construirmos o Reino do Pai no meio dos
homens.
A
Igreja é a comunidade dos santos que, unidos no propósito comum de servir à
Cristo e “fazer tudo o que Ele nos disser”
(cf. Jo 2, 5), caminha iluminada pela luz do Espírito Santo rumo ao Pai.
Cada um de nós, lutando pela própria santidade, torna-se, pelo seu sim ao seguimento de Cristo, elemento de
construção no Reino aqui na terra. “Perseverando
na oração” (At 1, 14), nos tornamos todos ladrilhos na edificação da
Igreja, presença sacramental de Jesus no meio dos homens, e elementos de transfiguração da nossa realidade atual,
tão combalida pelas forças contrárias à ação e ao poder de Deus e tão perdida
entre valores que lhe aniquilam e destroem. Pedro, tendo aprendido a lição do
amor misericordioso de Cristo (cf. Jo 21, 15-19), conclama-nos a ser "uma raça escolhida, um sacerdócio
régio, uma nação santa, um povo adquirido para Deus" (1 Pe, 2, 9).
Somos o povo que segue o Ressuscitado que passou pela Cruz, que atesta o amor
com que Cristo nos enriqueceu e que ajuda a dar forma, cada um à sua maneira e
fazendo parte da construção como pedra
viva, à Igreja que caminha ao encontro do Pai.
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