A LEVEZA DO FARDO


Eu tenho o costume de dizer – mezzo a sério, mezzo de brincadeira – que ser cristão não é para amadores, mas apenas para profissionais. Aquele que se declara seguidor de Cristo sem, no entanto, viver o desafio de encarnar Suas palavras na própria vida com radicalidade está fadado a uma vida de falsidade e ilusão – e até mesmo de falso testemunho. Somos chamados a ser não apenas anunciadores de Cristo na nossa vida diária, mas também, e principalmente, a ser portadores de Cristo, de modo a repetirmos com São Paulo: “Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2, 20). Aqui extamente mora a nossa profunda dificuldade em assumirmos Cristo em nós, pois viver n’Ele implica proclamá-lO em todas as instâncias da nossa existência, até mesmo ali onde a nossa humanidade é mais arredia. E somos mais arredios (e aferrados a nossos sentimentos e visões de mundo) exatamente onde há dor em nós, exatamente ali onde sofremos e choramos. Em uma sociedade hedonista e superficial como a nossa, é quase crime alguém defender o sofrimento – na opção mesma de suportá-lo livremente, por amor e como sacrifício – e o natural é procurar limá-lo de nós e do nosso entorno. O sofrimento, mesmo sendo uma experiência padrão do portfólio das vivências eminentemente humanas, é encarado por nós como um sem-sentido a ser exterminado, como sendo algo antinatural, irracional e inumano. Como algo que nos leva inclusive ao questionamento a respeito da presença de Deus em nossas vidas: onde estava Deus que permitiu que este sofrimento viesse até nós?
Jesus, no cumprimento de Sua missão entre nós, enfatizou sempre que Sua vida e Sua obra eram referenciadas pela entrega de Si ao Pai como oferta de amor. Sua vida inteira era (e é, na eternidade) guiada pela obediência irrestrita à vontade do Altíssimo, um “sim” permanente àquilo que o Abbá desejava realizar através d’Ele, Jesus, em nós, como fruto de Sua infinita misericórdia paterna: "Sim, Pai, eu te bendigo, porque assim foi do teu agrado" (Mt 11, 26). No momento extremo da Sua angústia, à véspera da Paixão, Cristo experimenta o tormento atroz e dilacerante da oferta de Si como Cordeiro sem mancha, mas não deixa nunca de cumprir aquilo que o Pai espera d’Ele: "Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice! Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres" (Mt 26, 39). A Sua vontade de Filho, manifestada no desespero ante a dor do pecado de todos os homens, era, por Sua obediência filial heroica, suplantada pela vontade de Deus. Aqui se manifesta a profunda oferta de amor realizada por Cristo através de Sua própria vida: é um sofrimento extremo, mas suportado em vista de algo maior, em vista da salvação da humanidade. O sofrimento com sentido, vivido com eficácia para a realização de algo grande, libertador, salvífico, que somente o Deus que nos ama é capaz de suportar.
Nesse sentido, São João Paulo II nos ensina: “De qualquer modo, Cristo aproximou-se do mundo do sofrimento humano, sobretudo pelo facto de ter ele próprio assumido sobre si este sofrimento. (...) Cristo vai ao encontro da sua paixão e morte com plena consciência da missão que deve realizar exatamente desse modo. É por meio deste seu sofrimento que ele tem de fazer com que « o homem não pereça, mas tenha a vida eterna ». É precisamente por meio da sua Cruz que ele deve atingir as raízes do mal, que se embrenham na história do homem e nas almas humanas. É precisamente por meio da sua Cruz que ele deve realizar a obra da salvação. Esta obra, no desígnio do Amor eterno, tem um carácter redentor.” (Carta Apostólica Salvifici Doloris, § 16). Em Cristo, como fruto de Sua vitória na Cruz, o sofrimento ganha uma outra conotação, um outro significado. Da mesma forma como, por Seu sofrimento redentor, Jesus atingiu as raízes de todos os males que afetam os homens e nos libertou e salvou do pecado e da morte, também nós devemos enxergar nosso sofrimento, unidos a Jesus, como caminho de libertação e salvação de nossas imperfeições e pecados. Somente unidos a Ele – e com Ele, ao Pai, com a mesma obediência filial heroica – é que poderemos experimentar a dor que nos aflige como via de purificação pessoal e de conversão de vida. Viver Cristo em mim aqui ganha outro sentido, ainda mais profundo: unir minha cruz à Cruz de Cristo e, consequentemente, unir minha dor a Sua dor é receber, junto com Ele e por Ele, as graças que Ele nos mereceu por Sua misericórdia através de Sua morte e ressurreição. “O Sofrimento humano atingiu o seu vértice na paixão de Cristo; e, ao mesmo tempo, revestiu-se de uma dimensão completamente nova e entrou numa ordem nova: ele foi associado ao amor, àquele amor de que Cristo falava a Nicodemos, àquele amor que cria o bem, tirando-o mesmo do mal, tirando-o por meio do sofrimento, tal como o bem supremo da Redenção do mundo foi tirado da Cruz de Cristo e nela encontra perenemente o seu princípio. A Cruz de Cristo tornou-se uma fonte da qual brotam rios de água viva” (São João Paulo II, Salvifici Doloris, § 18).
Aceitar, pois, o sofrimento é acolher resignada e amorosamente o caminho escolhido por Deus para propiciar a nossa redenção, com amor: “Realizando a Redenção mediante o sofrimento, Cristo elevou ao mesmo tempo o sofrimento humano ao nível de Redenção. Por isso, todos os homens, com o seu sofrimento, se podem tornar também participantes do sofrimento redentor de Cristo” (Salvifici Doloris, § 19). A experiência humana da dor não é algo aleatório nas nossas vidas, não é fruto do arbítrio cruel de um destino fatal sem Deus, mas é exatamente o oposto. É o Pai que nos convida a unirmo-nos a Cristo no momento ápice de Seu amor por nós, chamando-nos, a junto com Ele, ofertarmos a nossa vida na vivência total e radical do amor, amor que cura, amor que liberta, amor que salva. Como no ensinamento de Santa Teresa de Calcutá: “O amor, para ser verdadeiro, tem de doer. Não basta dar o supérfluo a quem necessita, é preciso dar até que isso nos machuque. Não se trata aqui de masoquismo, mas de oferta, de doação de si, de amor vivido na radicalidade. Somente em Deus o sofrimento cobra significado pleno, pois apenas o amor d’Ele justifica tudo em nós, apenas Sua misericórdia responde satisfatoriamente a todas as perguntas que as nossas dores suscitam em nossa vida.
Por isso, Jesus é insistente no convite em nos unirmos a Ele totalmente, com todas as áreas do nosso ser, pois somente Ele é capaz de tornar plena e significativa a nossa vida: "Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei. Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas. Porque meu jugo é suave e meu fardo é leve” (Mt 11, 28-30). Unidos a Cristo e permanecendo em seu amor (cf. Jo 15, 9), somos chamados a configurar a nossa vida a Sua, reproduzindo em nós Seus traços de misericórdia e a heroicidade de sua filiação. Mais do que portadores de Cristo, eu diria ainda, nós, vivendo em Cristo, somos intimados a ser Cristo para os demais, imitando-O a ponto de que a Sua vida seja confundida com a nossa, em intimidade (identificação) de amor. Inclusive (e principalmente) no sofrimento, para que aí a nossa humanidade, antes arredia, seja divinizada, transfigurada em Cristo. O nosso sofrimento, unido ao sofrimento de Cristo pela fé e pelo amor, torna-se leve não porque já não nos doa mais – a experiência da dor não nos é tirada, mas é resinificada pela graça de Deus em nós – mas porque encontramos na Cruz a justificação e o alento necessários para a nossa dor. O peso da nossa cruz de cada dia é reduzido porque, como Simão de Cirene, dividimos a sua carga com Aquele que, por amor, assume por Sua Cruz todo o peso de nossas incoerências, transformando-as – pela Sua misericórdia que se manifesta na nossa dor restauradora – em sementes de santificação e salvação.

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