ENCONTRO NO DESERTO
O
principal desafio do cristão no mundo contemporâneo é a fidelidade ao chamado
de Jesus numa sociedade cada vez mais multifacetada e divisiva. Inserido na
multidão de vozes que atraem a atenção e demandam a adesão de quem ouve, o
católico se vê fatalmente com a tarefa de permanecer atento à mensagem do
Evangelho e de concretizá-la, por suas atitudes e no exercício de sua missão
particular, nos ambientes em que circula. O compromisso exigente de “buscar as coisas do alto” (Col 3,1)
requer de nós, não apenas uma escuta atenta da vontade divina a ser cumprida em
cada ocasião, mas também a coragem de realizá-la em circunstâncias adversas.
Buscando cumprir as exigências próprias do seu chamado à santidade, o fiel,
além de ser confrontado constantemente por suas escolhas de fé, é tentado com
frequência a acatar as disposições da cultura da moda atual, sob pena de ser marginalizado
ou simplesmente excluído. São muitas as seduções, e o esforço por vivermos
retamente os princípios e valores da Igreja deve ser redobrado.
A
passagem em que Jesus, levado pelo Espírito Santo ao deserto, é tentado pelo
diabo (cf. Mt 4, 1-11) tem caráter pedagógico para nós. Cristo assume para si a
tarefa de formar os discípulos no desafio diário do enfrentamento às tentações
que se apresentam na atualidade, não de uma forma teórica, mas na concretude de
Sal experiência humana. Sob a orientação do Paráclito, Jesus vai corajosamente
de encontro às forças contrárias ao cumprimento de Sua missão, e essa
disposição de ânimo, amparada pela graça divina derramada em nós, é o que ele
espera de cada cristão. Para a batalha, é preciso, em primeiro lugar, que
sejamos constantemente levados pelo
Espírito: estarmos alicerçados n’Ele e agirmos de acordo com Suas inspirações,
por meio da intimidade que só a oração diária e a vida sacramental conseguem proporcionar. Além disso, é preciso lutar interiormente contra a nossa
própria humanidade maculada pelos vícios e pelo pecado, ou seja, vencer o homem velho em nós: “Vocês devem deixar de viver como viviam antes, como homem velho que se
corrompe com paixões enganadoras. É preciso que vocês se renovem pela
transformação espiritual da inteligência, e se revistam do homem novo, criado segundo Deus na justiça e na santidade que vem
da verdade” (Ef 4, 22-24). O homem novo é o nosso novo ser, restaurado à
luz da experiência pessoal com Cristo, por meio da qual “já não sou eu que vivo, pois é Ele que vive em mim” (Gl 2, 20). É
Ele, Jesus, Quem vence em nós as batalhas para alcançar uma vida segundo a vontade do Pai. Entretanto, Ele espera de nós um esforço pessoal, diligente e
constante, para vencermos a infidelidade ainda em nós, de maneira a
superarmos o que em nós ainda não está orientado para o Alto.
O jejum
“por quarenta dias e quarenta noites” é a preparação que cada discípulo é
chamado a realizar em auxílio à graça divina que nos fortalece. O ato de jejuar
“é a expressão da nossa solidariedade com
Cristo”, como nos ensina São João Paulo II. Em meio a uma sociedade
dependente da saciedade oferecida por bens materiais disponíveis, aquele Papa
nos adverte ainda: “esta civilização
fornece de fato, os bens materiais não só para que sirvam ao homem a exercer as
atividades criativas e úteis, mas cada vez mais a satisfazer os sentidos, a excitação
que disso deriva, o prazer momentâneo e a multiplicidade de sensações cada vez
maior”. A internet, em especial as redes sociais, estimula de maneira
intensa, tendo especialmente o público jovem como alvo, a satisfação dos
sentidos e o consumo de bens, por meio de uma cultura hedonista e consumista.
Somos tentados a assumir uma vida voltada para a vivência dos prazeres – em todos
os âmbitos, mas mais fortemente os sexuais – e para a obtenção de objetos que
os satisfaçam, para atender às demandas de aceitação e inclusão numa
sociedade cada vez mais sensualizada e de valores superficiais. O cristão, ao
contrário, é chamado a permanecer no
que acredita, a estar fixo na solidez dos princípios que o mantêm em constante
amizade com Deus e a não se afastar de Sua graça. Num contexto de profunda
volatilidade e inconstância, o cristão, fortalecido pela renúncia a tudo o que
pode desviar sua atenção para o que lhe é essencial, é chamado a manter-se na
firmeza e na maturidade dos propósitos que o levam, na batalha pela santidade,
a estarem unidos a Cristo.
A
experiência do deserto é a da solidão que propicia o recolhimento em Deus, do
crescimento da intimidade e da amizade com Ele. Jejuar no deserto é permitir-se renunciar a tudo o que aliena para centrar-se naqu’Ele que consegue saciar
as fomes mais profundas do homem: fome de transcendência, fome de sentido, fome
de eternidade. Confirmam-no as palavras do Papa Bento XVI: “A prática fiel do jejum contribui ainda para conferir unidade à
pessoa, corpo e alma, ajudando-a a evitar o pecado e a crescer na intimidade
com o Senhor. (...) Privar-se do sustento material que alimenta o corpo
facilita uma ulterior disposição para ouvir Cristo e para se alimentar da sua
palavra de salvação. Com o jejum e com a oração permitimos que Ele venha saciar
a fome mais profunda que vivemos no nosso íntimo: a fome e a sede de Deus”.
Deserto é o lugar onde ocorre o encontro com Deus, que nos prepara para a luta
no mundo e contra o mundo; o jejum é a nossa arma pessoal, nossa contribuição
individual para a vitória que nos é conquistada pelo poder de Cristo.
Unidos a
Cristo, sustentados pela Graça e guarnecidos do ânimo que a renúncia do jejum
nos dá, somos fortes para enfrentar as investidas do diabo. Ele nos tenta pelas
seduções do poder, do possuir e do prazer. A estas investidas, apoiados no poder do Alto, respondemos
com a humildade, o desprendimento e renúncia (que leva ao comedimento e à modéstia), os quais são as marcas
da presença de Cristo em nós. Ele, que Se deixou tentar para nos fortalecer e
ser exemplo para nós, nos auxilia no enfrentamento de tudo o que nos rebaixa e
nos distancia de quem nós somos e, pior ainda, do que somos chamados a ser.
Pois, como diz São Paulo, “em todas essas
coisas somos mais do que vencedores por meio daquele que nos amou” (Rm 8,
37).
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Bento XVI, Papa.
Mensagem de Sua Santidade para a Quaresma de 2009 (11 de dezembro de 2008).
Libreria Editrice Vaticana, 2008. Disponível em:
https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/messages/lent/documents/hf_ben-xvi_mes_20081211_lent-2009.html.
João Paulo II, São.
Audiência Geral (Quarta-feira, 21 de março de 1979). Libreria Editrice Vaticana.
Disponível: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/audiences/1979/documents/hf_jp-ii_aud_19790321.html.
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