À PROCURA DO SILÊNCIO
Vivemos uma vida cheia de ruídos. Dos headphones do seu Ipod, dos motores e das descargas dos carros que atulham ruas e avenidas, das conversas animadas com seus amigos nas rodas de bar, da escura profusão de sons e cores das boates, de todos os lugares brotam, incessantemente, ruídos, barulhos, vozeria, música estridente. Vivemos o tempo do barulho como regra geral de convivência social, como imperativo de comunicação, de disseminação de ideias, de valores e de tendências. Quando se quer dizer algo, já não vale mais simplesmente o “falar”; ao contrário, as palavras precisam ser berradas, gritadas, acompanhadas dos mais dissonantes acordes, das músicas mais tresloucadas, dos sons mais grandiloquentes. Vivemos o tempo em que a expressão parece buscar sempre o exagero, o desvairado, em que as pessoas não falam pela necessidade simples do “dizer” o que é importante, mas precisam “extravasar”, “deitar fora”, “falar para todo o mundo ouvir” o que se passa em seus corações e mentes. Parece-me que já não é necessário o “que” dizer (ou o “por que” dizer), mas sim o “como”.
Em
resposta a tudo isso, vem à nossa memória o tão esquecido silêncio. Sim, o
silêncio dos excessivamente piedosos, dos sem-graça, dos que não sabem
aproveitar a vida, dos que enchem os bancos das igrejas, dos recatados, dos
estranhos. Esse silêncio tão renegado aos corredores dos conventos, seminários
e monastérios; silêncio desterrado do dia-a-dia das pessoas, como intruso
indesejável e sinônimo da falta do que fazer e do que dizer; silêncio tão
contrário ao ensurdecedor toque das guitarras das bandas de heavy metal;
silêncio tão inimigo da batida eletrônica incessante das noites dos jovens, que
se esbaldam na droga e no sexo em festas intermináveis; silêncio abolido das
bocas e dos olhares dos que amamos e dos que nos amam, relacionamentos marcados
por palavras e sons demais, e gestos de menos.
Viver
o silêncio hoje é como experimentar uma realidade muito antiga, quase medieval,
em que as vidas das pessoas eram marcadas pelo ritmo lento dos acontecimentos e
as pessoas tinham tempo de observar (mais do que falar sobre) aquilo que havia
à sua volta. Não se quer, aqui, traçar um painel histórico ou antropológico do
papel do silêncio na vida do homem, mas simplesmente fazer recordar tempos em
que ele ainda fazia parte da vida das pessoas. Tampouco de trata de uma volta
ao passado, um ranço de nostalgia em meio a desilusões com o tempo presente,
mas trazer ao centro da nossa vida esse silêncio tão necessário aos dias de
hoje, porque tão rico na sua experiência em deixar calar as nossas vozes para
que uma outra Voz possa falar.
Não
é à toa que o silêncio traz à mente, de cara, os nossos conhecimentos e vivências
religiosos. O silêncio faz parte dos ensinamentos da Igreja a respeito do
conhecimento de Deus, como caminho de autoconhecimento e experiência pessoal
com a Trindade a partir da vida interior. Está nas passagens bíblicas,
especialmente nos Evangelhos, nos quais vemos a importância do recolher-se, do
meditar, do “guardar as coisas no coração” como sinais de fecundidade nas vidas
de Jesus e Maria; está nos escritos da Igreja dos primeiros séculos,
especialmente dos Padres do deserto; nas pregações e confidências dos santos,
bem como em suas experiências ascéticas; nas recomendações do Magistério da
Igreja, como linha pastoral e doutrinária que leva à experiência de Cristo no
dia-a-dia dos fiéis; está na herança litúrgica recolhida ao longo dos séculos,
pela qual se descobre que o encontro com Cristo passa pelo recolhimento e
discrição dos gestos, e não pelo espalhafato das palavras.
No
entanto, como quase tudo o que diz respeito às práticas cristãs (e católicas),
o silêncio ficou fora de moda, virou coisa do passado, artigo de museu. Para
sobreviver, teve de se esconder nos claustros, nas celas conventuais, nas
orações dos monges. Teve de fugir, inclusive, das novas tendências dentro da
própria Igreja, tão marcada atualmente pelo louvor, pelas práticas de fé
regadas a muitas lágrimas, cantos e danças. Virou coisa de santo que se coloca
nos andores, nos presbitérios, virou relíquia de um passado religioso muito
distante – e sinônimo do lado sombrio de Deus. Ganhou ranço de velha sacristia,
odor de incenso de missa rezada em latim.
Propor
a volta do silêncio, pois, não só à nossa vida religiosa como também ao nosso
cotidiano não é das tarefas mais fáceis. Mas torna-se imprescindível antes à
necessidade de um encontro cada vez profundo com esse Deus de Amor, distante
das nossas orações e da intimidade do nosso coração. Quando há barulhos demais,
não há espaço para que nossas lágrimas falem, o nosso jejum de vida interior se
manifeste, a nossa desorientação fique a descoberto. Quando há barulhos demais
em nossa alma, com muitas vozes clamando por atenção e atraindo a nossa sede de
sentir, o próprio Deus, que respeita a nossa decisão e a nossa liberdade, não
encontra ocasião para falar.
É
próprio de Deus falar com a voz do silêncio porque o silenciar é a primeira
manifestação interior da busca por Ele, da necessidade interior de acercar-se
de Sua Graça. Ou ainda, é a primeira prova de nosso amor por Ele, já que denota
toda a disponibilidade do nosso coração e da nossa alma ao seu chamado e ao seu
encontro. Há que mencionar aqui, entretanto, a nossa grande má vontade em
encontrar-se com esse Deus que nos parece frio, tirânico, sem vida, insensível.
Provavelmente, a grande fuga do silêncio se deve a uma fuga desse Encontro,
haja vista que as nossas ideias erradas de Deus soterram toda a inclinação do
nosso coração até Ele. Um Deus que fere por Suas duras palavras, que machuca na
Sua incisiva condenação dos nossos pecados e faltas, que está sempre sério e
carrancudo no Seu atuar e agir não merece a minha atenção.
Deus
precisa fazer sentido para mim, a fim de que eu queira encontrá-lO e faça dele
a razão e o norte do meu ser e dos meus atos. E a chave para uma nova
compreensão de Deus como Amor, como Pai, como Vida, como Sentido e Meta de
nossa caminhada, passa pela experiência do silêncio. O silêncio como abandono
nos Seus braços de Pai, que acalentam e suportam comigo das dores e os desafios
da vida; o silêncio como ocasião de escuta de Sua mensagem de Amor, através da
meditação das Sagradas Escrituras; o silêncio como meditação dos mistérios de
Deus e das riquezas de sua criação, que se manifestam através da observação
serena da natureza, das pessoas ao nosso redor e da vida que corre ante os
nossos olhos; o silêncio como vivência da humildade, pelo reconhecimento das próprias
dificuldades no caminho e pela confiança de que serão vencidas somente com a
Graça que vem do alto; o silêncio como via de autoconhecimento e, através dele,
do conhecimento do próprio Deus que habita no mais profundo do nosso ser; do
silêncio como propiciador de paz interior, tão importante a que se formem
consciências sãs e pessoas amadurecidas.
O
silêncio descrito aqui não é somente o calar a boca. Há que calar também os
outros sentidos, as inclinações interiores, a nossa vontade e, principalmente,
a nossa alma e o nosso coração, para que possamos deixar Deus falar conosco. O
silenciar diante do Pai enriquece-nos interiormente porque vem acompanhado de
gestos concretos e genuínos de amor, de reverência, de mansidão e pequenez.
Cria em nós a consciência de sermos filhos diante de Deus, permite-nos viver
dessa dependência d’Ele como crianças que buscam confiança e fortaleza nos
pais. Prepara-nos para a aventura de amor na vivência árida nosso cotidiano,
porque é o espaço onde promovo o Céu na Terra, onde Deus se encontra comigo e
manifesta todo o Seu Amor e a Sua Misericórdia. E, igualmente, é ocasião
propícia a que aprendamos a ministrar este Amor como testemunho e missão em
meio a pessoas e ocasiões na vida. O silêncio torna-se linguagem especial, pela
qual expressamos um discurso rico de significados e sentidos, de valores que
não se perdem porque estão impregnados de sabedoria e vida interior.
E, por fim, o silêncio é resposta madura e
incisiva contra a corrente de ruídos que alienam, que despersonalizam e que nos
tiram o foco do aprofundamento da nossa vida interior e do nosso crescimento
pessoal. E, em última instância, que nos afastam desse Deus Pai que é próprio
fundamento da nossa história e o sentido da nossa vida.
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